AS FACES DA HONRA
Com a violência presente em todo noticiário, deve ser normal o medo que se sente. É um pesadelo diário e acordar assustado é a rotina da gente.
Aquela noite não foi diferente, um tiro ecoou e acordei de repente, mas não cheguei levantar, pois não sou tão valente.
Meio sonolento comecei a pensar em uma cena de luta das quais só ouvia falar. Aos poucos adormeci ou tive uma visão, mas podia ser um sonho começando se formar.
Vi-me em uma favela, mais especificamente em uma viela daquele estranho lugar. Havia gente falando em um linguajar diferente e mesmo sem saber por que comecei acompanhar.
— Aqui é Morte Certa e eu mando no
lugá, não
dô arrêgo a meganha que aqui
vié pisá.
— Aquele é Chico Testa e nasceu pra
matá, degolou o primeiro homem assim que aprendeu
andá — falava um bajulador para o outro escutar.
O elogio fez efeito e o valente se pôs contar de tudo que tinha feito.
— O primeiro matei aos oito, pois queria me
estuprá. Em casa
nóis era
in déis e eu o mais
novim, mas logo matei o mais
véio pois queria me
roubá. Depois de um assalto, voltei
presse lugá e uns
parsa vagabundo quisero mi depená; dos três não matei um, mas fugiu pra num
vortá.
— Conta pra mim
du acunticido onde
ocê matô um seu
subrim e depois daquele
otro quando, mesmo sem
mardadi, matô o seu
cumpadi — o puxa-saco voltou a falar, olhando pra todo lado, com muito gesticular.
— Desses
num mi orguio, pur isso
num vô contá, mas fica
ocê sabendo
qui inté cheguei
chorá.
— E das suas
tatuage, isso
ocê pode contar — insistiu o mesmo homem no intuito de agradar.
—
Pur casu das
otras mortis quiseru mi interná i mandaro dois puliça cum órde di mi levá.
É esses dois
palhaço, mais depois tem muito mais, só deixei
di tatuá pur farta di lugá. Falam
qui tô errado
i qui tenho di pagá, mas quero
vê quem
mi defendi quando
estô nesse lugá.
— Ao todo são cem
mortis é o que escuto falar — movendo os dedos das mãos o outro se pôs somar.
— Até
intão é isso, mais pra
puliça é muito mais;
colocaru na minha conta
tudu qui num poderu ixplicá. Logo
dispois disso
mandarú muito mais
genti, mas só
voltô um
repórti pruque num matu inocenti; foi ele
qui publicô qui ninguém
mi prendia, pois a tropa levava tiro sem sabe
di ondi saia.
Nisso o sonho mudou para a beira do cais, no convés de um navio onde estavam um jovem e seus pais. A mulher sempre calada, no braço do filho agarrada, acompanhou a continência dos dois homens de farda.
— Pai, eu vim pedir sua benção, pois dentro de poucas horas vou sair numa missão.
— Você me pedir
bença é sua obrigação, mas vinculando um motivo me causa apreensão. Esse velho lobo do mar já enfrentou furacão: ou volto com o meu navio, ou morro junto ao timão. Seja lá o que vá fazer, faça com determinação; você não veio para o mar, mas também serve à nação. Sei o filho que criei e o seu comandante também, não lhe daria as divisas se não fosse pela lei; enfrente a vida com honra dá forma que te ensinei e a morte com coragem, pois tu és bravo, eu bem sei. E se Deus Onipotente quiser te levar, a bandeira será o meu presente; e com orgulho vou guardar.
No pátio do batalhão uma companhia aguardava instrução; com seus quatro pelotões, mais os tenentes e sargentos mantidos em formação. O filho do velho marujo passou a tropa em revista, sentindo nos ombros o peso da patente de capitão.
— Você é dos meus o melhor Oficial, quis assumir o comando, mas pra mim você fez mal. Eu vejo naquele matuto uma pessoa de bem, com exceção dos soldados, os caras que ele matou eu mataria também. Você pediu a tarefa, escolheu os homens, armas e munição; vá e lute com honra, mas acabe com ele ou o traga pra prisão. Vai ser a batalha mais dura e esperada do momento, só não traga vergonha para o nosso regimento — Disse o gordo que ostentava a patente de major, já banhado de suor.
— Comandante, eu não sou de muita prosa, ou cumpro minha missão, ou volto num caixão.
E a tropa foi marchando, qual parada militar, mas já no pé do morro começaram a se dispersar.
O alcaguete que seria pago para o criminoso mostrar, tremia de tanto medo que precisou se limpar e quase gaguejando começou a falar:
— Capitão, eu não quero te assustar, mas nenhum desses soldados são homens para lutar. Veja o que acontece à sua frente, estão todos se escondendo, de soldado a tenente; e isso sem contar que nem um tiro sequer foi ouvido no lugar. Se aceita opinião de um medroso declarado, meu conselho é voltar.
— Já que confessa seu medo, não vou nem comentar; diga apenas o nome que ele está a usar? — Disse o Capitão, esperando muito dos homens na hora de lutar.
— Esse negócio de muitos nomes, é tudo invenção, Tião só usa esse nome porque não tem certidão; mas é homem de palavra e coragem que não falha, assim que subirem o morro vai começar a batalha.
— Ninguém morre antes da hora e não me julgue por você, que deve até fugir do que não vê. Mas se veio até aqui, no intuito de receber, ou me mostra esse Tião, ou eu mando te prender.
— Vou mostrar e sair, e não vou ficar para ver; pois atacar o Tião é pedir para morrer — disse o rapaz começando a chorar, não mais querendo ir, e só pensando em voltar.
— Vai do meu lado e me mostre o barraco onde se esconde o coitado, depois se esconda num canto e controla esse pranto.
Pulando de tronco em tronco, correndo de pedra em pedra, saltando de buraco em buraco, subiu a tropa a ladeira até avistar um barraco.
— É aquele! O primeiro da frente, Tião diz que é a guarita, a porta da comunidade, a proteção de verdade.
Enquanto o rapaz deitava no chão, a tropa se aproximava e Tião no seu barraco pra sua mulher falava:
—
Muié eu
tô numa enrascada, acho que
prepararu pra mim uma emboscada!
Mal ele tinha falado e o Capitão gritou quase igual um delegado.
— Tião, você está cercado! Eu vim pra te levar preso ou até para matá-lo.
— Sem intenção
di disafiá, mas pra
sabê como
chamá; posso
sabê cum quem
tô a
falá? — respondeu Tião num estalo.
— Capitão Celera, um soldado de carreira, comandante da missão.
— Capitão, eu nunca
inganei ninguém,
agradeçu si agi num mi inganandu tumbém.
— Eu sou homem de palavra, pergunte o que quiser e terá resposta clara.
—
Prá móde eu
sabê, sem
querê lhi ofendê, poderia
mi dizê quantus home qui é
qui vêm?
— Aqui têm cento e cinquenta homens, todos treinados em combate e é minha obrigação evitar que um lhe mate sem qualquer necessidade; é uma tropa de elite, com armas e munição do melhor que hoje existe.
— Eu
sô um
nêgo só,
cum munição contada, num posso
disperdiçá pra
acabá quesa cambada.
Mais si mi cabá as
bala, vai
di faca ou
di inxada e vai ter tripa
isparramada.
— Melhor sair agora e ir para a prisão do que descer esse morro carregado num caixão — deu aviso o Capitão.
— Se é assim que quer o Capitão,
deixemu de lengalenga, vou sai do meu barraco
i acabá com essa pendenga.
— Então, que assim seja. Venha pro campo da honra e permita que eu te veja.
— Vejo que é home
di corage i num é
quarquer um, mas
num si isqueça, Capitão,
qui quem já
matô cem pode
matá mais um.
— Tião, ou você vai em cana ou pra debaixo da terra e aqui nossa conversa encerra.
— Eu
tumbém num quero meu fim é só o Capitão
fazê di vorta o seu
camim, pois sei que quando eu saí você vai
está suzim.
— Tião, você não vai deixar mais mortes em seu caminho, hoje eu te levo preso, ou o mato mesmo sozinho. Agora abra essa porta e prepara pra sair ou mando uma granada e a ponho pra cair.
— Você sabe Capitão
qui eu faço opinião
di num mi intrega a prisão; morto sim, mas preso não.
Si lança essa granada e mata um meu
fiím eu
deço desse morro e, lá embaixo, vai se uma guerra sem fim.
— Tião, bravata não me põe medo e não quero escutar. Sem levando você preso ou o corpo pra mostrar; eu garanto pra você que não deixo esse lugar. Não vou lançar a granada, mas pode se preparar que eu vou subir e te pegar.
— Vai
u úrtimo conseio, vá pra casa sem receio e me deixa aqui em
paiz cuidando dos meus
fiím ou assim
qui nois si topá vai se u seu fim.
Quando o Capitão rodeou o barraco já não encontrou o Tião, apenas algumas crianças deitadas pelo chão e uma mulher de joelhos, rezando com devoção.
Novamente do lado de fora, olhou para todo lado, procurou em cada canto, e não viu nenhum soldado.
—
Óia Capitão, num adianta
prucurá, você veio
pur um lado e eu fui pelo
di lá, todo cabra que encontrei começou a se
mijá,
correro morro abaixo e sei
qui num vão
voltá. Mais parecia enxurrada ou uma tropa de burrada deixando esse
lugá.
Tião levantou a arma engatilhada no rumo do capitão que não tremia de medo, mas de raiva da deserção.
Os dois atiraram juntos e a bala do Capitão passou raspando em Tião, mas esse foi mais certeiro, bem próximo do coração.
O Capitão desabou, Tião se aproximou e bem de perto falou:
— Esse
terrero só tem um galo,
i si num qué qui eu
termini di ti mata, começa a
cacarejá.
— Mesmo caído e ferido nunca vou pedir arrego, aponte pra minha testa e puxe logo esse dedo.
— Eu avisei Capitão, cadê as
força que tinha,
chegaru aqui
iguar galo e
fugiru comu galinha. Eu
táva mi discançano i viero mi aborrecê agora
u qui lhi resta é reza para
morrê.
— Ó meu Pai Poderoso, eu sempre fui bom filho, pai e esposo e sempre levei a vida com fama de corajoso; a honra que carrego é o meu maior tesouro, não me falhe nessa hora ou eu morro desgostoso.
Enquanto o outro se preparava pra terminar o começado, o bravo Capitão guardou a arma no coldre, ajeitou a farda com orgulho e olhou para o Tião.
Nisso saiu a mulher e viu o ensanguentado; sem soltar um só gemido, caído quieto e calado.
— Não o mate, meu marido, pois é covardia
matá home ferido.
— Pra ele
façu um
favô e se o mato é por respeito; fosse eu o derrotado não queria doutro jeito.
— Minha senhora eu agradeço essa sua intervenção, mas sem querer lhe ofender; seu marido tem razão. Ele prefere a morte a ir para a prisão e eu prefiro morrer depois da decepção; ver seus homens desertando fere a honra de um Oficial em comando e viver perde a razão.
— Eu num sei
falá in honra,
mais tenhu dignidade, tive filhos com Tião, pois é
home di verdadi; mais
si ele
matá um ferido só vai
sobrá piedadi — respondeu a mulher com muita emoção, enquanto apertava um terço em sua mão.
—
In briga di dois home muié num vem
si metê;
pur di certu lá
in casa, não tem mais
u qui fazê.
—
Si matá esse
home é
mió mi matá tumbém, pois só vivo com
u Tião
qui aprendi respeitá i não
cum esse
home qui um ferido
qué matá.
Tião se pôs a pensar e em instantes voltou a falar:
— Vou
ouvi minha
muié, pois
fais parti da minha honra a
famia preservá. Vai
simbora Capitão é só
desce essa
tria, vá rever sua
famia i num vorte nesse
lugá.
O Oficial se pôs em pé com muita dificuldade, começou a caminhar pensando em dignidade. A cada passo que dava a cabeça mais baixava, voltar sem os seus homens era o que mais lhe pesava. Relembrou o velho pai que sequer sem navio voltava, como podia ele voltar sem a tropa que comandava
À medida que caminhava, pra traz o morro deixava e em sua frente enxergava os mais negros caminhos. A imagem do espadim, o símbolo da autoridade, da honra e da dignidade partido em pedacinhos.
Apoiado numa pedra, com sangue escreveu nela uma palavra deserta. Tirou do cinto a pistola, enfiou o cano na ferida aberta e para acabar com o martírio acionou o gatilho.
Nem ele ouviu o tiro, abafado contra o peito, só lhe veio um pensamento como último suspiro e caiu sem um gemido: “Lamento a minha sorte, mas ao menos da minha morte Tião está protegido”.
Sem saber do sacrifício do nobre Capitão, com muita emoção, Tião da família se despedia:
— Agora eles sabe quem sou eu
i dondi mi incontrá e pra
mode protegê oceis é
fugi ou
mi matá.
E ninguém mais ouviu falar de Tião naquela região. Chico Testa, virou lenda nas favelas da cidade, um santo protegendo o bairro de Morte Certa.
Na pedra que marca o túmulo do Capitão, ainda se pode ler “HONRA” escrito por sua mão.