Será que eles vão rir?
- Por que eles não riem mais? - questionou ele para si com tristeza enquanto vestia sua roupa colorida. - O que aconteceu? - pensava amargo enquanto tirava o estojo de maquiagem da mochila puída.
O camarim era mal iluminado, apenas uma luz amarela localizada no topo do grande espelho manchado quebrava a penumbra, fornecendo luz apenas para que o sujeito não se arrumasse na escuridão completa. - Pelo menos a escuridão esconde a imundice que toma conta desse lugar. - pensava ele olhando em volta e sentindo o ambiente opressor agravar sua tristeza.
Ele começou a maquiagem, primeiro a pasta branca, ao redor dos olhos, nas sobrancelhas e bochechas, um pouco de pó para secar a pasta, depois o blush azul nas bochechas, o batom roxo destacando a imensa boca de palhaço. Por fim fez a gota azul debaixo do olho esquerdo, era uma maquiagem de palhaço triste, refletindo aquilo que ia em seu coração.
- É por isso! - exclamou com uma pontada de felicidade encarando o rosto estranho no espelho. - É essa estúpida maquiagem triste, como posso levar felicidade vestindo uma máscara de tristeza? - constatou ele satisfeito.
Com o espírito reanimado pegou o pano sujo e embebeu em removedor esfregando a pele do rosto com força para retirar a expressão negativa pintada nela. Esfregou com força e vontade como se quisesse limpar a tristeza do espírito com o remover de maquiagem. A pele ardia mas estava limpa e ele poderia começar de novo.
Novamente iniciou o processo, primeiro a pasta, depois o pó. Mas dessa vez o blush era rosa, dando automaticamente um ar de jovialidade e ânimo na máscara nova, pegou o baton vermelho para dar o toque final e especial, pintou a boca e fez uma pequena bola no nariz.
Ele se olhou no espelho por alguns segundos, testou um grande sorriso, mas seu rosto se deformou em uma máscara de tristeza novamente.
Lembrou-se das risadas da noite anterior e pensou que eles riam sim, mas não das coisas divertidas que fazia, riam por que o achavam patético, todos acham palhaços patéticos hoje em dia. Eles riam de mim e não comigo. Eles zombam de mim e do que represento.
- Malditos comediantes de stand-up! - disse o palhaço em voz alta, lembrando-se das entrevistas, “é um tipo diferente de humor”, “é um humor de cara limpa” diziam eles de maneira presunçosa, como se eles tivessem inventado o “fazer rir”. Eles apenas humilham os outros, o palhaço zomba de si mesmo, traz o humor das coisas simples e inocentes e não ofendendo outras pessoas, pensava ele sentindo a raiva crescer dentro de si. Foram eles que ensinaram esse escárnio ao público.
Ele se encarou mais uma vez, observando o rosto alegre no espelho, testou novamente um sorriso e se assustou profundamente com o que viu. O rosto de um psicopata estava ali, distorcido pela maquiagem, mas pode ver seus olhos assassinos e sua boca vermelha com dentes pontiagudos. No susto pegou o pano com removedor e esfregou com violência no rosto. Sentiu a pele arder dos solavancos, mas só parou quando a máscara tinha desaparecido por completo.
- Maldito John Wayne Gacy e maldito Stephen King! - gritou ele para o espelho irritado e a luz tremeluziu. - Psicopata maldito que desvirtuou a pureza de uma figura infantil, e o autor oportunista que fez sua história ganhar proporções mundiais. Aqueles puros de verdade para rir de nosso humor, já crescem com um pavor psicótico em decorrência da terrível imagem que a mídia carniceira construiu de nós. - palestrou em sua mente cheia de ódio.
Ele não podia desistir, pode ter sido o tom errado de vermelho na boca e no nariz. Queria usar o vermelho, pois é a cor da paixão que ele tinha pelo trabalho e pelas crianças. Ao pensar nas crianças uma gota de suor desceu gelada pelas suas costas e ele sentiu um frio na espinha. Balançado a cabeça agressivamente de um lado para outro ele afastou os pensamentos.
Precisava voltar ao trabalho, era algo na maquiagem pensou novamente com uma sensação de déjà vu. E mais uma vez ele voltou ao processo, tirou o grande estojo de dentro da bolsa, olhou para ele orgulhoso, cheio de cores contendo infinitas possibilidades. Primeiro a pasta, depois o pó, por fim as cores, depois ódio, medo e removedor.
Ele perdeu a noção do tempo, das repetições. A pele do rosto já esfolada e irritada misturando pequenas manchas de sangue aos resíduos de maquiagem no pano sujo, mas a obsessão turvava a percepção de dor. Criava diferentes pinturas, mas elas não o satisfaziam, eram tristes demais, ou loucas, dementes, agressivas. Ele tentou outras cores, combinações que no fim eram arrancadas com violência.
- É o vermelho! Preciso acertar o tom do vermelho. - sua obsessão cíclica voltando novamente para o ponto de partida.
E no vermelho ele foi, testou todos os tons, combinou com outras cores, e a sucessão de erros o irritava cada vez mais, a roupa colorida já estava em pedaços no chão, em decorrência de um ataque de fúria, seu corpo magro e marcado agora tremia no frio do ambiente mal climatizado. As mãos sujas tremiam enquanto ele tentava ajustar a última combinação em vermelho no seu rosto, no momento final o solavanco de frio fez com que um risco borrasse tudo. Furioso mirou o espelho manchado, olhando a máscara aplicada sobre a face irritada, tentou forçar um sorriso, mas o risco borrado o deformava, a fúria em seus olhos não deixava passar felicidade, aquele vermelho era fajuto, não representava sua paixão. Num átimo de fúria sua mão direita espalmada foi de encontro ao espelho manchado.
- Maldito espelho! - gritou em desespero e amargura sentindo o vidro lacerar a palma de sua mão. - Você mente, o rosto está perfeito! - gritava ele no ímpeto da loucura.
Ele olhou para da mão de onde o filete de sangue escorria, depois para o espelho que agora refletia pequenos fragmentos da sua imagem invés da única grande. O sangue escorria em seu tom vivo e escarlate. Aquele era o vermelho que ele queria, pegando uma paleta ele pressionou o corte para que o líquido fluísse com mais força. Depois que a paleta estava cheia, enrolou um pano na mão ferida para estancar o sangramento.
E mais uma vez o pano sujo raspou a pele cansada para que o processo fosse reiniciado, não havia mais removedor, então ele tinha que usar água e mais força. A violência era tamanha que a pele já começava a se deformar, mas ele não se importava, pois a pele sem maquiagem era a verdadeira máscara, na verdade ele era o palhaço e o resto era a ilusão. O importante era a risada.
A pasta, o pó, o blush e o sangue. Como era lindo! Ele passava o pincel ao redor da boca, marcando-a com o líquido viscoso, revelando suas tonalidades na aplicação. Ao fim ele estava feliz. Era o vermelho. Ele olhava suas pequenas cópias com satisfação. Ele com certeza vão rir.
Realizado, ele buscou a veste rasgada ao chão e iniciou o concerto. Não foi difícil por ela já ser uma colcha de retalhos. Quando ficou pronta ele voltou-se novamente para o espelho apenas para o terror tomar conta de tudo.
O lindo vermelho estava arruinado, tinha virado um marrom, seco e sem vida. Ele buscou a paleta e ela estava igual.
- Não, não, não! - chorava e as lágrimas que escorriam terminavam a ruína da maquiagem. Desabando no chão e convulsionando em soluços. O choro era misto de frustração, tristeza, ódio.
- Calma, eu só preciso de mais! - pensou entre soluços, na mesma velocidade o que o choro veio ele virou uma grande gargalhada. Eles vão rir!
Ele se levantou foi até o espelho e pegou um grande caco do vidro quebrado com a mão esquerda, e fez um corte profundo no pulso direito fazendo com o vermelho corresse farto. Colheu em um pote depois enrolou um pano no pulso para estancar o sangramento.
E o processo foi reiniciado, mais pasta, mais pó, mais blush e mais sangue. E para seu desespero não conseguia segurar o pincel com sua mão direita, o corte foi muito fundo e danificou os tendões, havia perdido o controle dos dedos, mas não se abateu e iniciou o procedimento com a mão esquerda, seria mais lento, mas ele conseguiria.
O vermelho era lentamente espalhado em uma metade da boca e depois na outra de maneira lenta e falhada. Quando ele finalmente terminou e foi conferir o reflexo fragmentado, um choque percorreu seu corpo. A primeira metade já estava corrompida, no tom escuro e sem vida.
- Será que eles vão rir? - pensou com amargura.
Mais pasta, mais pó, mais blush e mais sangue.