Irmãos com a mesma sombra
Não consigo lembrar do passado, não consigo lembrar da minha vida, apenas os últimos momentos dela, quando eu passei a ter 16 anos para sempre.
Lembro-me que eu e meu irmão Nicolas tínhamos acabado de chegar da escola. Meus pais estavam me esperando, bravos, para conversar.
- Erik, tem algo para nos contar? - perguntaram simultaneamente.
- Te espero lá em cima mano, depois que terminar com o pai e a mãe.
Nicolas subiu ao quarto e meus pais me olharam preocupados, provavelmente era por eu ter esfaqueado, ou melhor, tesourado um menino na escola. Apesar de que eu fiz isso para proteger meu irmão, eu era o mais velho, mesmo que por minutos, eu tinha que cuidar dele.
Meia hora, esse foi o tempo que levou os berros de meus pais. Eles falavam com as paredes, essa era a retribuição por eles não serem bons pais, viviam gritando, nos humilhando e sempre ignoravam Nicolas.
Eu subi e comecei a fazer a lição, até que, horas depois, Nicolas me chamou, disse que era importante, algo que mamãe e papai estavam falando, descemos as escadas sorrateiramente e pude confirmar com meus próprios olhos e ouvidos, eles planejavam nos levar para uma psiquiatra.
Isso foi o fim, o que eles estavam pensando? Não nos amavam mais? Tudo bem, eu fiz várias coisas ruins, mas eu não era louco, Nic sabia disso, afinal ele sempre esteve lá.
- Vamos fugir - sussurrou Nic - Vamos para bem longe! Assim não podem nos levar.
- Mas... Eles ficarão preocupados, sentirão nossa falta.
- Não vão não, eles não nos amam, não ligam para nós, querem nos jogar com loucos, vamos embora daqui!
Um ódio acendeu dentro de mim ao ouvir aquelas palavras, nós partimos, e tudo deu início naquela noite.
* * *
Dois jovens vagueavam as ruas desertas e sombrias da cidade, já passava da meia noite.
- E agora, mano? Para onde vamos? - Perguntou Nic.
- Não sei, vamos continuar em frente, eu esperava que você soubesse, afinal, a ideia foi sua.
Os ventos gélidos pararam abruptamente, o silêncio pairou no ar por um bom tempo.
Um homem se aproximava, estava com uma garrafa de vinho na mão, era velho, barba mal feita, roupas sujas, fedidas e rasgadas, não passava de um velho bêbado cambaleando pela calçada e se apoiando no muro para não cair.
Os dois o olharam com desprezo, ele bebera tanto que caiu no chão, já inconsciente.
Os dois passaram por ele e alguns passas depois...
- Erik! - disse Nicolas com a voz abafada.
- Deixe-o Nic, ele não passa de um vagabundo - riu - Não acha Nic? Nic?
Surpreso ao ver que o sujeito estava segurando o irmão, tirou uma pequena faca da bolsa.
- Acha mesmo que pode me machucar com isso? - disse rindo.
- Tudo bem, o que quer? Nós daremos, apenas nos deixe em paz.
- Você é estranho garoto, mas já que é tão generoso não vou negar tal oferta.
Erik pegou sua bolsa e a entregou para ele.
- É tudo o que temos, agora pegue e nos deixe.
- Ainda não é tudo - disse em quando quebrava o pescoço de Nic e avançava com extrema velocidade para cima de Erik.
* * *
Era dia, o Sol ardia no céu, Erik acordou, estava em cima de um prédio, o Sol incomodava cada vez mais sua pele, a cada minuto ela parecia queimar mais e mais, ele tentou se levantar, mas caiu outra vez. Ele estava confuso, sua cabeça latejava, parecia que ia explodir, tudo a sua volta vibrava, impedindo que ele de ficasse firme no chão, ficava cambaleando no topo do edifício, evitando as extremidades para não cair.
Seus ouvidos ardiam em fogo ao escutar cada detalhe, inaudível aos humanos; carros, pássaros, insetos, passos, conversas, respirações, corações pulsando, tudo ao mesmo tempo. Seu olfato captava mil odores, até mesmo de coisas que ele nem sabia existir.
Sua mente começou a se acostumar com seus novos sentidos. Então algo lhe veio à mente, "Nicolas!", ele não o vira desde a noite passada, quando seu pescoço foi quebrado.
O desespero tomou conta de Erik, ele precisava encontrar Nicolas, seu irmão poderia estar vivo, afinal, ele estava.
Para a surpresa de Erik, um saco preto não estava muito longe, pelo cheiro ele sabia que era um cadáver, ele correu para confirmar seu medo, era Nicolas, com olhos esbugalhados e com o corpo completamente seco. Erik caiu em choros, mas foi interrompido por seu ombro que pegou fogo.
O Sol agora era insuportável, sua pele começou a comburir, e o fogo começou a consumi-lo. Ainda confuso com tudo isso, ele não resistiu, não teria sentido viver, seus pais não o queriam mais e seu irmão morto por um monstro, então se entregou para a morte.
Seus olhos, já danificados pelo fogo, não enxergavam mais nada, uma escuridão recaiu ao seu redor, e tudo o que ele via era o rosto da própria morte, o olhando fixamente.
Apesar de estar sendo queimado, ele sentia um frio tomar conta de seu corpo, até ser interrompido por uma pancada na parede, alguém o tinha jogado para a sombra e começou a apagar o fogo em seu corpo já destruído.
Sua visão voltou, junto a todo o resto, seu corpo se regenerou rapidamente. Com o corpo novo em folha, apenas suas roupas tinham vestígios de um incêndio.
Ele olha ao redor, procurando por alguém, mas nada além do cadáver e ele estavam ali.
- Olá? - gritou - tem alguém ai?
O silêncio percorreu o ambiente por um tempo até seus pensamentos tumultuarem sua mente. “Estou ficando louco? Vendo coisas? Meus pais tinham razão?”
Erik sentou e tentou se isolar do mundo, organizar seus pensamentos e descobrir o que estava acontecendo.
- Erik? O que está fazendo? - chamou Nicolas, olhando para ele.
Erik ficou chocado ao ver o cadáver olhando para ele. Não podia ser verdade, Nic estava morto.
- Não tenha medo irmão, sou eu.
O Morto começou a emanar uma luz tênue e azul, lentamente ela se separou dele e começou a adquirir o formato de Nicolas quando este era vivo.
- Nic? É você mesmo? - perguntou
- Sim mano, já se esqueceu de mim? - brincou.
- Não, é que... Você está morto. Isso é possível?
- Falou o garoto vampiro - ironizou - Eu não sei como, mas somos isso agora, temos que nos acostumar.
- O que faremos agora?
- Você está preso aqui, vamos esperar até a noite.
Os dois se sentaram e esperaram, conversaram sobre como tudo mudou tão rápido, como tudo isso aconteceu e o que fariam agora?
- Você não está... com... você sabe, sede? - perguntava Nicolas curioso.
- O quê? Não, tipo... talvez isso seja apenas um mito sobre eles, e o único problema seja o Sol.
O tempo passou, o tom avermelhado no horizonte já tinha desaparecido. Nicolas olhou para Erik e percebeu que ele estava inquieto, sua respiração estava ofegante, ele queria sangue.
Já de noite, risos femininos foram ouvidos, uma fragrância irresistível penetrou Erik, incendiando dentro de si, um desejo insaciável.
Quando Nicolas percebeu, Erik estava na beira no prédio, observando duas meninas passando por um beco. Seus caninos se sobressaíram dentre os outros dentes.
- Você as deseja, não? Você pode ouvir cada pulsar de sangue em suas veias - disse Nic flutuando ao seu lado – Vá! Sem sangue você morre! Mate-as!
- Mas... concentrou forças para lutar contra o desejo - Isso é errado.
- Eu já disse, sem sangue você morre, e também, as pessoas merecem isso, elas que são os verdadeiros monstros aqui, eu já menti para você? Você está fazendo o certo, apenas sobrevivendo.
- Sim, você tem razão, é apenas a lei do mais forte.
Erik pulou do prédio, não era tão alto quanto ele pensava, a queda não o machucou, mas apavorou as garotas que deixaram escapar um grito. Ele hesitou, mas Nicolas deu força em forma de palavras para que prosseguisse.
O vampiro as atacou, sedento de sangue, suas presas perfuraram o pescoço das jovens que gritaram por ajuda.
Saboreando cada instante, sentindo cada gota de sangue que explodia em sensações de prazer, até um homem o interromper.
- Hey! O que está fazendo? - gritou o sujeito.
- Mate-o - ordenou friamente Nicolas.
O irmão não pensou duas vezes, com uma super velocidade que a noite lhe presenteou, ele atacou o estranho, e secou suas veias.
Satisfeito, ficou ciente do que fez, de todos que matou, dos gritos, mas diferente de antes, agora isto lhe dava mais prazer.
* * *
Semanas se passaram e cada vez mais o número de vítimas aumentava, os policiais nunca chegavam a tempo e toda a manhã eram anunciados os números de cadáveres encontrados.
- - -
Era noite, Erik observava a cidade, em cima de um prédio, procurando novas vítimas e policiais próximos do local, Nicolas, como sempre, flutuava ao seu lado, com a pele translúcida e azulada.
Os assassinatos mudaram Erik o tornaram mais frio, mais sanguinário.
Ele já decidiu sua vítima, era um policial, ele decidiu que brincaria com aquela cidade, com todos que nela habitam. Estava pronto para pular, mas algo lhe chamou a atenção. Ele ouviu um anúncio no rádio de um carro qualquer.
“... desaparecido, garoto de 16 anos, estatura mediana, cabelos lisos e loiros. olhos castanhos claros... alguma informação entrar em contato com Eleonor e Manuel, contato: 36...”.
Erik sentiu algo acender em seu interior, faíscas de ódio cresciam e se tornavam chamas, que em segundos se espalharam pelo corpo.
- São eles, não são? - Perguntou Erik.
- Sim irmão, são eles.
- Não ouvi nada sobre você...
- Sim, eu também não...
- Bom... - hesitou - eles querem nos ver, vamos dar o que eles querem.
* * *
Eleonor preparava o jantar, seu olhar era vago, e sempre olhava para o telefone com esperanças de notícias do filho.
- Tudo bem querida, ele vai aparecer, só ter paciência. - Confortava a mulher.
- Sim, é claro. - suas palavras não expressavam confiança - O jantar está pronto, vamos comer!
As horas passaram e tudo o que tiveram foi um telefonema, que no final, era um trote.
O silêncio da noite tardia foi interrompido por batidas na porta. Esperançosos, o casal vai em direção à porta, mas ao abri-la ninguém estava presente. Os dois cruzam olhares tristes e fecham a porta enquanto vão para o quarto. "Talvez mais sorte amanhã" pensou.
A mulher subia as escadas enquanto o marido desligava a TV, os relâmpagos e trovões anunciavam o início da chuva, que era o único barulho que se podia ouvir naquela casa, até que...
“Olá mãe, pai!" Erik estava no meio da sala com Nicolas ao seu lado, flutuando como sempre. Relâmpagos iluminavam rapidamente os rostos, chocados, ali presente.
- Filho?! Onde você estava? Nós ficamos preocupados! - disse a mãe descendo as escadas rapidamente.
- Você... - disse num tom alto, interrompendo a vinda da mãe - acha que sou louco?
- Sim - afirmou Nic - olhe nos olhos deles, nos desprezando, fazendo jus aos monstros que são.
- Filho nós... só queremos o seu bem - disse Manoel.
- Mentira, ele só que a nossa confiança para nos jogar no hospício. - contradisse Nic.
- Filho nós...
- Calado! - a voz de Erik esteve por um curto instante em sintonia com o trovão.
- Vocês não merecem o título de pais... - sussurrou Nicolas.
- Não merecem viver. - completou Erik.
Erik começou a avançar lentamente na direção de seus pais, tinha uma faca na mão, a mesma que usou para se defender do bêbado dias atrás.
- Filho, você não está bem... Deixe-nos te ajudar!
- Eu já disse para você ficar quieto! - lançou a faca no ombro do pai.
Eleonor gritou e correu junto de seu marido, mas Erik lhe deu um tapa, que a derrubou. Suas presas ficaram a mostra despertando a sede em seu interior. Ele foi até o pai e o mordeu, este gritou de dor até desmaiar. Ao perceber o pavor de sua mãe, gritou:
- Olha no que me transformei! O monstro que sou!
Levantou-se e foi até a mãe, paralisada de medo e exibiu suas presas cheias de sangue.
- Eu não estou louco! Não preciso de um hospício! - perfurou, com a mão, a barriga da mãe. - Eu só estava protegendo o meu irmão!
- Fi-filho... - falava baixo e já sem forças - v-você não tem irmão... você é filho único.
Erik se afastou, chocado com a afirmação, entrou em estado de negação " como ela pode desfazer de Nic tão facilmente?"
- Do que está falando? - gritou com o corpo já morto - ele está bem... - parou ao perceber a ausência do irmão. Ele procurou, gritou, exigiu a presença do irmão, mas nada, até que viu ele como seu reflexo no espelho da sala, o objeto era grande, permitindo-se ver o corpo inteiro.
- Nic... Do que...
- Como você é tolo jovem - interrompeu Erik - nunca viu as provas ao seu redor, quando as crianças falavam que eu não existia, não estavam zombando, afinal eu não existo, não para eles.
- O que... - Erik estava confuso.
- Pense bem, Erik, seus pais nunca me viram, o ser que lhe transformou não me viu, tudo que me envolvia foi fruto da sua imaginação, seus pais estavam certos, você é louco.
Erik começou a pensar, lembrou-se de cada detalhe, cada acontecimento, tudo ficou claro, ele estava mesmo louco.
- Não, não, não, eu não posso estar louco, não posso. - sussurrou Erik - quem é você? por que está fazendo isso?
- Eu sou você, oras - riu sarcasticamente - sou seu lado obscuro, sou o demônio em seu interior, sou a parte em que todos vocês tem em comum, o mal. - começou a sair do espelho - e o porquê é simples, estou cansando de viver escondido, de ser ignorado, por isso tomarei conta de cada ser da terra, começando por você...
- Eu... Eu não vou permitir! - afirmou o garoto.
- Permitir? haha! - zombou da atitude de Erik - Você não pode fazer nada, afinal, agora é tarde de mais para você.
A coisa estava frente a frente com Erik, o garoto tentou fugir, mas seu corpo não se mexia, um frio começou a tomar conta de seu corpo e uma escuridão vinha do horizonte, devorando tudo em seu caminho, logo ele percebeu que estava só, em um imensidão de trevas, que devorava lentamente cada célula de seu corpo.
= = =
Não consigo lembrar do passado, não consigo lembrar da minha vida, apenas os últimos momentos dela, apenas estes momentos, que estão se desintegrando em minha mente, junto de tudo mais, oh Deus, estou deixando de existir...
= = =
E tudo deu origem naquela noite, uma nova história, a minha história, o demônio que enganou mais um inocente, o demônio que pode andar durante o dia, entre os humanos, entre outros demônios.