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 A Colônia (conto)

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schildtpsico




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MensagemAssunto: A Colônia (conto)   A Colônia (conto) Icon_minitimeDom Out 05, 2014 9:15 pm

Ela estava com sono e muito cansada, mas não conseguia dormir. Já passavam das três horas do horário de descanso instituído pela Colônia, apenas quatro horas até ter de levantar-se novamente. Mas a ideia só a punha a cogitar sobre o dia que viria, não a ajudando a conciliar o sono. Talvez fosse a claridade artificial, perpetuamente mantida na Colônia, como uma maneira de pô-los a salvo do Mal que rondava lá fora. Seres sinistros e selvagens, que não hesitariam um milésimo de segundo em atacá-los e terminar com a ordem e a paz tão arduamente construída pelos primeiros Conselheiros.
Eram cinco, e foram os últimos andarilhos do tempo que se fora, último elo com o passado remoto e longínquo, do qual apenas alguns poucos ainda tinham acesso, por fragmentos de história que sobreviveram ao advento do escuro. Nas lendas, contava-se às crianças que, há muitas eras, o mundo não estava sempre escuro. Os humanos não precisavam se esconder por detrás de altas muralhas para poder sobreviver. Todos andavam livremente por aí, e o tempo não era marcado pelos toques das trombetas. As pessoas sabiam a hora de acordar, pois existia algo chamado Sol. E o tempo era dividido entre manhãs e noites. E o céu, este era azul de manhã, e de noite tinha luzes brilhantes, que os antigos chamavam de estrelas.
Agora, ao olhar para fora, tudo o que podiam divisar era o breu. Às vezes mais claro, às vezes mais escuro, mas sempre indiscernível. Havia os que afirmavam que o sol ainda existia, apenas que, através da espessa camada de nuvens e gases tóxicos, não era possível vê-lo, mas ela não acreditava nisso. Eram nada mais que histórias para fazer as criancinhas dormirem.
Crianças. Às vezes ela acreditava que era esse o motivo dela conseguir dormir tão pouco, mesmo depois de um dia exaustivo de trabalho. Na Colônia, a divisão dos trabalhos era muito fácil de entender, até porque não havia muitas opções: se você fosse homem poderia ser do Conselho, um cargo reservado aos mais velhos da Colônia. Eram homens também os lanceiros que guardavam as muralhas, os vigias, que mantinham a paz entre os moradores da colônia, os construtores e mecânicos que cuidavam da manutenção do espaço e das “bugigangas” que vinham do mundo lá fora, e que ela nunca entendera.
E havia os caçadores. A missão mais temida. Sair pelos portões afora, em busca de provisões para a sua coletividade, já que a minguada terra que tentavam cultivar não produzia alimento o suficiente para todas as famílias – mesmo a prole tendo sido alvo de redução gradativa desde o início da última Era, passando de dois para um filho por casal. Já estavam na quarta Era desde a construção da muralha, perfazendo 1876 anos desde a construção da Colônia.
Às mulheres, restava a confecção de roupas, a higienização e o cuidado com a prole, geralmente a sua própria. Sim, naquele tempo, ser mãe, dar a vida, era algo muito importante. Há muito tempo, diziam que também existiram mulheres que se intitulavam “professoras”, mas a grande maioria da Colônia aprovou por decreto que ler era uma tarefa dispensável naqueles dias, sendo esta função gradativamente extinguida.
Mas ela não aceitara nenhuma das posições – e não pudera uma em particular: ela não conseguia ser mãe. Foram várias e várias tentativas infrutíferas com seu marido, escolhido para ela pelo Conselho por ser um homem forte da construção, que teria pulso firme – não que ela acreditasse que precisasse, mas acabara recebendo isso em troca de duas ou três intromissões em deliberações do Conselho – e a conduziria com força, mas também docilidade no lar.
Algumas das suas crianças nem vieram ao mundo; outras vieram, mas disformes e sem o tamanho certo para sobreviverem, o que até não era assim tão incomum. Eram tempos difíceis e sombrios, o ar, a terra e a água estavam contaminados, já não se sabia bem pelo que, e cada nascimento era uma dádiva – mas que deveria ser controlada, já que não havia comida o suficiente para tantas dádivas juntas.
Até que sua menininha nasceu. E ela era tão linda! Olhos de um castanho profundo, que a fitavam cheios de doçura, fazendo-a esquecer-se de algumas das reivindicações que pretendia fazer junto ao Conselho. Ela era mãe! E se sentia plena. Nada mais importava que cuidar de sua filha e fazê-la feliz. Foram dias abençoados. Mas sua alegria durou pouco. Havia algo de errado com seu anjinho, que chorava todo tempo, sem parar, sem que ninguém soubesse dizer o que seria. Azar, talvez. Já não tinham conhecimento científico para determinar de que mal o bebê padecia, nem acreditavam mais em um Deus que velasse por suas almas. E assim seu anjinho morreu. E, depois dela, nenhuma dádiva veio a ocupar novamente seu útero. Até que ela e o marido desistiram de tentar, e passaram a apenas coabitar a mesma casa.
Ela queria muito ser útil à Colônia. Mas cuidar de crianças, quando ela não podia ter as suas, lhe era um tormento. Também não se via remendando roupas ou fazendo qualquer outra atividade tipicamente feminina. Porque lá haveria mulheres. E muitas delas seriam mães. E ela não suportaria ficar entre elas, um segundo que fosse, sem sentir-se um pária. Foi então que ela expôs ao Conselho sua decisão. Afinal, todos na colônia deveriam trabalhar em algo – era a lei. E por mais que ninguém mais soubesse ler o que estava escrito nos primeiros livros da Colônia – nem mesmo os Conselheiros – todos assumiam isto como verdade absoluta e inquestionável. E ela decidiu que seria uma caçadora − a primeira – e, pelo que sabia, não havia nada nas leis que a impedisse. E, como ninguém mais sabia ler para encontrar palavras para contradizê-la, mesmo que a contragosto, o Conselho acabou por acatar sua decisão. Seria uma caçadora.
Até porque isso não lhes parecia um inconveniente assim tão grande. Ora, todos sabiam que a vida dos caçadores era curta; cedo ou tarde, alguma das feras que habitava o mundo exterior acabaria por dar cabo desta que tentava desafiar as ordens instituídas. A maioria dos caçadores vivia o quê? Quatro, no máximo, cinco anos em serviço. Isso se ela de fato aguentasse continuar após sua primeira missão e não implorasse para ser imediatamente transferida. O mundo lá fora apresentava perigos inenarráveis, e somente os caçadores sabiam, de fato, o que encontravam quando saíam. Nenhum Conselheiro havia sequer espiado por sobre a muralha – até porque, se assim não fosse, eles não teriam vivido o suficiente para se tornarem Conselheiros. Não, não era qualquer um que conseguia chegar aos trinta e cinco anos de idade naqueles tempos sombrios.
Já ela, na primeira vez em que saiu da Colônia, soube que tinha feito a escolha certa: a visão do mundo lá fora era terrível; o caos imperava para todo lado que virasse, a vegetação estava quase morta e a caça parecia tão desesperada e faminta, que as vezes se sentiam mais caçados do que caçando. Mas ela aprendeu que correr pela própria vida, lutar e abater a caça que alimentaria sua Colônia, sua família, era uma das poucas coisas que ainda a fazia se sentir viva. Era a adrenalina que ainda existia, embora não houvesse ninguém mais que soubesse o que isso era.
Logo, ela começou a ansiar por cada missão, a oferecer-se como voluntária quando não era requisitada, tornando-se uma das caçadoras mais sangrentas. E, ao contrário de alguns que desistiam da tarefa, não se sentia mal. Eles só os abatiam, não precisavam lidar com a retirada de pele e vísceras, o que para ela seria uma tarefa medonha. E servir à Colônia era seu dever. Sem as esparsas presas que conseguiam abater, na maior parte das vezes já com muito mais pele e ossos do que carne, todos eles já teriam perecido pela fome há muito tempo.
Era assim que ela se sentia, até àquela manhã, que começou sendo como qualquer outra. Ela e mais sete de seus companheiros homens, que aprenderam a respeitá-la por sua bravura e sangue frio, vestiram o traje para poder sair lá fora. Era necessária uma roupa especial, já que o ar acabava sendo muito mais venenoso que o da Colônia, que possuía um sistema de exaustores – o que não impedia que a maioria tossisse até vomitar os pulmões e morresse antes dos quarenta – e a maioria das carcaças de velhas coisas de metal das Eras passadas parecia estar de alguma forma contaminada.
As últimas três caçadas haviam sido frustrantes: após caminharem horas e horas atrás de rastros do que parecia ser um pequeno bando, haviam perdido o rumo e voltado à Colônia de mãos abanando, sendo ela motivo de chacota para alguns de seus companheiros. Apesar do respeito que conquistara, homens seriam sempre homens. Ou seja, teria que conviver constantemente com a presença daqueles que, não importava o que ela fizesse, sempre dariam um jeito de lembrar-lhe que era uma mulher, e que seu lugar não era ali. Assim, ela se sentia enganada por aqueles vermes nojentos que já deveriam ter virado almoço e saiu decidida a não voltar sem um bom pedaço de carne desta vez.
Indo para o último local em que os rastros haviam aparecido, mais uma vez puderam notar que algo tinha passado por ali. Pelas marcas, eram cerca de quatro, provavelmente um macho, uma fêmea e sua prole, e desta vez seus instintos lhe diziam que eles não poderiam estar muito longe. Caminharam a manhã toda, sempre sentindo como se sua presa estivesse dois passos à sua frente, embrenhando-se mais e mais para dentro daquelas antigas construções gigantescas, onde se dizia que os primeiros caçadores ainda encontraram comida e restos intactos de seus antepassados. Mas agora, cada centímetro das construções já fora varrido em busca de sortimentos, sem que nada fosse encontrado, só restando a caça como última alternativa à sobrevivência.
Quando já estavam quase ficando sem tempo, tendo de retornar mais uma vez à Colônia sem lograr êxito, ela finalmente os avistou. Eram quatro, como supunha, e não tinham notado a aproximação dos caçadores até que fosse tarde demais. Os dois mais velhos e o mais jovem maior foram abatidos imediatamente, antes mesmo que pudessem entender o que lhes havia acontecido. Mas o menor conseguiu escapar, correndo guinchando por entre os escombros. Toda a sua equipe estava feliz, contemplando a caça, mas ela não desistiria de sua presa tão fácil, não depois de a terem feito de boba todos esses dias. Mesmo sabendo do perigo, saiu correndo sozinha atrás da presa menor, disposta a caçá-la até o fim do mundo se fosse necessário. Ouvia, às suas costas, seus companheiros instando-a a voltar e deixá-la para outro dia, outra caçada.
Não saberia dizer se fora sua obstinação, a pouca idade da presa, ou sua sorte, mas conseguiu encurralar o filhote menor um pouco adiante de onde saíra. Era realmente pequeno, já que, ao contrário de outros que já caçara, não tentou atacá-la, apenas encolheu-se contra a parede, como a adivinhar seu fúnebre futuro. Mas foi no instante em que ela a mirou, no ápice de segundo em que apertava o gatilho e a bala voava do cano de sua arma, no instante sem volta, que a caça abriu os olhos e volveu-os para cima, olhando diretamente nos seus.
Podia estar magra, suja e com um odor repugnante, mas no instante em que aqueles olhos castanhos profundos a fitaram, ela já não podia ver a caça, ou lançar mão de suas considerações mesquinhas sobre as necessidades da Colônia. Naquele momento, ela só via uma menininha, de olhos tão intensos quanto os tinha a sua, fitando-a sem esperança e deixando uma lágrima cair antes de pender o corpo para trás devido à bala que a atingiu na testa, entre os olhos que agora a fitavam sem vida.
Voltou a seus colegas e, pela primeira vez, mentiu: a caça havia escapado (menina, menina, era só uma menininha com medo, só uma menininha) e, felizmente, os colegas confundiram seu ar taciturno com irritação por ter falhado em sua busca. E agora, em casa, ela não conseguia dormir pensando no que fez. Perguntava-se quando será que eles haviam se tornado esse tipo de monstro, que caça outros seres humanos como se fossem animais. Ela não sabia. Só sabia de uma coisa: ela não poderia mais fazer isso. Pior, ela não poderia viver com isso.
A este pensamento, levantou da cama que compartilhava há cinco anos com o marido, desde os seus doze anos, caminhou até a sala e pegou sua arma de caçadora, ficando a fita-la por um longo tempo. Caminhou até a única poltrona de que dispunham, sentou, e apontou a arma que, algumas horas atrás, ajudara a dizimar uma família, para sua têmpora. No último instante, naquele em que já se puxou o gatilho o suficiente para que não se possa voltar atrás, lembrou-se do olhar da menina a encarando. Morreu com este olhar como sua derradeira lembrança.
Como ela não morrera de nenhuma doença, sua carne seria reaproveitada pela Colônia, o que era considerado uma grande honra. E, como a primeira caçadora desde o início das primeiras Eras não sabia escrever – até porque, mesmo que soubesse, já não havia ninguém que compreendesse – ninguém soube o que de fato a matou, na sala da pequena casa que compartilhava com o marido: Culpa.
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