O conflito entre as ilhotas do sul já se perpetuava por longos doze anos, arrastando-se como os corpos mutilados no campo de batalha. Não havia mais paz ou sossego entre os habitantes, e a guerra se estendera aos lares. Mulheres e crianças eram agora soldados, buscando substituir os homens que caíam por terra. Guerrear deixara de ser coisa de homem.
Inês era uma dessas mulheres que adentrara o front nos últimos cinco anos, assumira um lugar de prestígio entre os homens e era considerada pelos guerreiros de Citera como a própria Palas Atena. Entretanto, em seu coração padecia um furor que nem a Deusa entenderia. Era uma guerreira nata. De tão estimada entre os soldados, assumira o posto de general do principal front de guerra de sua ilha. E não havia batalha ganha ou perdida cujo resultado não fosse de seu conhecimento.
Inês costurava um ferimento que transpassava seu rosto, quando ao galope do cavalo aproximou-se o mensageiro da barraca, a seguido do relinchar do eqüino, o mensageiro adentrou sua barraca:
- General, trago notícias do front na costa.Estamos perdendo a batalha, há muitos deles na praia, há tantos homens que desconfio que todos os homens restantes em Cárpatos estejam aqui lutando. – informou,o mensageiro ao que Inês assentiu com a cabeça - E General... – o mensageiro hesitou, baixando a voz em seguida – O próprio Rei está no campo de batalha. Não nos resta melhor alternativa exceto uma pequena estrada três mil milhas a norte do campo de batalha, próxima ao acampamento inimigo.
A guerreira franziu o cenho com tamanha força que a ferida em seu rosto abriu-se soltando os pontos de costura crua e jorrando sangue sobre os olhos, que arregalados o absorveram, e pela primeira vez em anos Inês sentiu euforia em seu peito.
- Selem o meu cavalo!
Ilha de Cárpatos - 20 anos atrás...
O pequeno casebre fétido tinha o cheiro dos mortos muito antes do daquela serena manhã de primavera.
Os pássaros ainda cantavam quando ao entrar no quarto as crianças encontraram a mãe inteiramente nua, de bruços sobre a cama, com os longos cabelos cobrindo a face lânguida. - Mãe... – a menina de cabelos louros murmurou empurrando a porta, enquanto a barra ensangüentada do vestido deixava um pequeno rastro.
- Galata! – chamou um rapazinho ainda menor que a menina, surgindo no quarto logo depois dela e pulando na cama como um predador.
Enquanto a garota olhava a imagem desfalecida da própria mãe, o menino afastou o cabelo de seu rosto com pressa. Nos olhos do menino havia uma expectativa repleta de perversidade transfigurada num sorriso, quando encontrou o pescoço degolado da mulher.
- Não disse, Inês!? – o menino disse com o olhar em brasa. – Não importa quantos sonhos você tenha com esses deuses. Eles não existem! Nenhum deles, mesmo que se deite com todos os sacerdotes dessa ilha, ela não volta a viver. Uma vez morta, morta pra sempre! – concluiu triunfante.
Inês olhou a si mesma: o corpo mirrado, raquítico e violado pela promessa de que os deuses a atenderiam sempre. Depois olhou a mãe, morta pela sua ingenuidade. Pobre, Galata!E por fim, observara o irmão caçula, que sorridente sobre a cama, fitava o cadáver da própria mãe, inebriado pelo orgulho de estar certo. Odiosa de toda a situação, Inês quis matar o irmão, mas antes preferiu um banho, pois tinha nojo de si.
Novamente fitou o corpo de menina.
- Desgraçados! – bradou, saindo do banho ainda nua.
Enquanto atravessava a rua sob o olhar estarrecido dos magiares sequer lembrou-se de que a mãe estava morta. Pensou apenas nos homens que a tocaram, que invadiram seu corpo sagrado. “Os deuses te serão fiéis se fores fiel aos teus sacerdotes” afirmara o oráculo da cidade, e reafirmara sua mãe a cada nova manhã.
Então quando Anacleto matara Galata enquanto essa lhe sorvia as tetas na madrugada, não teve dúvida em dar aos sacerdotes tudo o que estes queriam. Eles quiseram-lhe o dinheiro e a jovem deu a eles, todo ouro, cobre e sal que havia no pequeno casebre. Quiseram ainda mais e roubando dos vizinhos, Inês dera tudo o que conseguira. Então quiseram eles seu corpo infantil, virginal e sagrado, e então ela o deu. Durante todo o dia, eles violaram seu corpo de menina incontáveis vezes. Violaram-no desperto e desfalecido. Fizeram-no sangrar e deixaram marcas que nem a guerra deixava nos homens e apenas findaram sua orgia quando não se aguentavam mais em pé. Mas crédula de que os deuses a atenderiam e devolveriam Galata à vida, Inês suportou cada nova chaga que se abria em seu corpo, e segurou nas entranhas cada urro que rugia no seu interior.
- Os deuses lhe atenderão minha boa menina! – prometeu um dos sacerdotes, dando-lhe dois tapinhas sobre os cabelos louros, antes de abandonar o corpo ensanguentado da menina sobre o altar.
Galata, no entanto, permanecia morta.
- Desgraçados – murmurou novamente, enquanto as mulheres maldiziam sua nudez. – Matarei a todos eles, e depois matarei Anacleto por matar a nossa mãe. E se existires, ó deuses... Também matarei vocês.
Prometeu a si mesma.
Inês, entretanto, não cumpriu sua promessa. Sequer deu início a sua vingança, sendo contida pelos populares e levada a julgamento como louca.Inês, com apenas doze anos, viu-se deportada para uma ilhota a oeste de Cárpatos, onde fora abandonada a própria sorte.
Em Cárpatos a condenação foi tida como clemente por parte dos julgadores, pois haviam de incumbir à morte da menina ao destino, livrando-se assim de se sujarem ainda mais com o sangue de sua inocência.
Desde que matara a mãe degolada, Anacleto, não sentia prazer senão com a morte. Era apaixonado pelas mortes violentas. O sangue jorrando das espadas, os gritos de desespero... Não havia melhor afrodisíaco em toda a Grécia.
- Não há limites para um homem quando ele tem uma coroa na cabeça e sangue nas mãos. – afirmava aos lacaios que o serviam no front.
Ninguém sabia como Anacleto, um filho de camponeses órfão subira ao trono de Cárpatos, mas, depois de muito sangue ele estava ali. Tinha uma coroa na cabeça. Tinha sangue nas mãos. E nada que o impedisse de terminar o que havia começado vinte anos atrás.
O sanguinário Rei preparava-se para voltar ao front, quando em sua barraca saída da escuridão, puxaram-no mãos femininas. Os gritos desesperados dos inimigos açoitados o fez pronto para o coito, e logo a imagem conhecida de sua fiel perseguidora investiu sobre o seu corpo, rasgando-lhe a roupa com ferocidade.
- Anacleto! – os lábios pestilentos de Tisífone sibilaram, enquanto o corpo da Fúria desceu sobre o seu – Sanguinário Rei, que assassinaste a própria mãe. Pensas tu que matarás a própria irmã? – a Fúria prosseguiu com o discurso, enquanto da escuridão duas tochas se acenderam e surgiram sobre a penumbra dois anjos esculturais.
- Olá, Anacleto! - as mulheres adentraram a barraca engatinhando, os seios fartos lembraram-no imediatamente os seios que lhe sorviam leite, quando num rompante de raiva degolara Galata. Os corpos que se esgueiravam num rebolado estonteante deixaram em prontidão seu corpo e estarrecido pelo toque e pela boca sedenta das três mulheres,Anacleto pouco notou quando uma quarta mulher adentrou-lhe a cabana.
- Quem são vocês!?!– perguntou ele às duas beldades que haviam surgido da penumbra.
- Stygere!
- Poinê!
Responderam os dois espíritos ao que se aproximaram do homem e sussurraram em seus ouvidos.
- E viemos buscar você!
Somente quando ouviu tal afirmação que Anacleto recobrou o senso de realidade e abrindo os olhos deparou-se com uma estranha que sem pestanejar desceu na sua direção uma espada. Enquanto o brilho flamejante da espada reluziu sobre a noite, Anacleto, apenas ouviu seu silvo metálico e sentiu o sangue quente lhe escorrer pela garganta. Finalmente Tisífone, que o acompanhara toda vida havia desaparecido, e restavam apenas Poinê e Stygere que lhe estendiam os braços.
- Venha conosco, menino! – murmurou Poinê, ao que tudo mais desvaneceu em bruma e escuridão.
Não houve grito de desespero. Apenas uma morte rápida, silenciosa, mas terrivelmente violenta e quando Inês desviou os olhos da cabeça do irmão que rolara sobre a grama. Deparou-se com uma terceira pessoa, uma mulher de olhos vis e hálito de enxofre que logo abriu um sorriso.
- Prazer, pequena Inês. – a mulher estendeu a mão. –Tisífone!
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